Pele de Embrulho na TV Shop
São rosas senhor
 
 
 
 
Dez anos depois
Talvez eu seja daqui
Pele de Embrulho
Da minha boca de luz / Do meu ventre de luz / Dos meus olhos de luz
 
 
Bocas e beijos
Abraça-me
Porto 2001, Rio de Janeiro 2003
Foi como um sonho
 
 
Objectos espelho
 
Será pão
No conforto de um beijo
Como um reflexo
 
Serão rosas
Do meu umbigo de prata / Do meu beijo de prata / Do meu dedo de prata
 
 
 
Karnapidásana
2005
São rosas senhor
Fotografia laminada, rosas vermelhas, pvc, mdf pintado, relva e folhagem artificial
5 x 160 x 171 cm

rute rosas na sociedade martins sarmento
Suzana Vaz. Outubro 2005.

Tendo como referência inspiradora a lenda da Rainha Santa Isabel, o ciclo de trabalho que Rute Rosas agora apresenta inscreve-se no imaginário ancestral dos ‘poderes miraculosos’. A Rainha Santa, para ultrapassar a interpelação desconfiada de D. Dinis, transforma em rosas os pães para dádiva que levava ocultos no manto, e mostra-as, para que o Rei as veja: “São rosas, Senhor”. O fenómeno de transubstanciação que esta lenda trouxe para a história é um dos ‘poderes mágicos’ (siddhis) atribuídos aos “seres dotados de super-conhecimento [1]", como os ascetas ou os santos. Os siddhis, ou perfeições, são interpretados como uma etapa na realização da aspiração à transcendência, denotando a mestria, ou domínio perfeito, do asceta sobre si próprio e sobre o mundo, reveladores da sua vivência supra-humana. Na tradição metafísica, os siddhis participam de um paradigma de tendência para o concreto, para a experiência pessoal, que contrasta com a tendência para a especulação, do ritualismo e respectiva escolástica, favorecida pela prática religiosa institucional [2].

No paradigma de tendência para o concreto inserem-se o yôga, o tantrismo e a alquimia [3], que partilham um carácter iniciático cujas origens remontam ao pano de fundo da cultura rural originária, de elementos matriarcais (de culto da fertilidade e da divindade feminina), e de práticas xamânicas e ascéticas. Estas práticas primordiais concretizam-se num conhecimento empírico acerca do corpo, de domínio experimental sobre os seus processos psico-mentais e psico-físicos, que são homologados aos processos do cosmos [4]. Integrado nessa cosmofisiologia de erudição e de poder sobre o corpo, o renascimento iniciático marca a passagem para um novo modo de ser, não profano, não condicionado - que transcende os processos corporais mundanos da condição humana – liberto para uma vivência supra-humana. A alusão explícita a este universo de referências toma lugar na obra de Rute Rosas desde o conjunto de trabalhos Da Terra ao Céu, Karnapidásana e Onde há Fumo há Fogo, de 2004, ilustrativos dessas práticas corporais, propiciadoras de estados de consciência descondicionados. A abordagem de um estágio ulterior da experiência concreta na realização da aspiração à transcendência, de aquisição de um corpo e de um modo de ser divinos, veículos de uma linguagem intencional, como veremos, fica ilustrada no potencial iconográfico da perfeição escolhida para a exposição São Rosas, Senhor.

No percurso do praticante, as técnicas psico-fisiológicas do Yôga, que actuam sobre o ritmo cardíaco e respiratório e permitem o controle do sistema neurovegetativo, visam a supressão das flutuações da consciência de modo a alcançar o samádhi, o estado de hiperconsciência pelo qual o praticante estabelece o novo modo de ser. Entretanto, no tantrismo, que coloca a ênfase no veículo físico e energético dessa transformação, estas técnicas reatam a tradição que preconiza o corpo como campo de homologação e como campo iconográfico. Pela identificação entre, por um lado, a fisiologia orgânica das modalidades sensoriais e, por outro, os diversos planos do significado atribuído ao corpo (cosmográfico, geográfico, arquitectónico, sonoro e visual), toda a experiência concreta é transubstanciação e simbolismo, a fisiologia é equiparada a uma liturgia e o corpo é transformado em linguagem. O praticante descobre a génese e a destruição do universo no seu próprio corpo: seja pela inversão do processo cósmico, de regressão ao estado indiscriminado da totalidade original, seja pela conjunção dos opostos energéticos e fisiológicos [5] (dos quais a paragem da respiração e das flutuações da consciência e o retorno do sémen são alguns dos dados objectivos), seja ainda pela criação desse discurso novo e paradoxal que toma o lugar da linguagem profana destruída [6], e que substitui o universo profano por um universo de planos convertíveis e integráveis. Assim, uma das características recorrentes da composição iconográfica desse discurso é a simetria, assinalando a projecção de um plano supra-humano de equivalências e ambivalências, onde residem os duplos descondicionados, renascidos e consagrados, do corpo profano, e onde ficam estabelecidas a conjunção dos opostos físicos e a inversão dos processos mundanos.

A apresentação de São Rosas, Senhor tem como característica compositiva a simetria, que pode ser tomada como uma referência directa ao princípio de homologação entre corpo profano e corpo divino, entre os processos de um e de outro, e a esse acervo de conotações iconográficas.

O espaço da exposição é organizado simetricamente, como um espelho: disso mesmo nos dá imediatamente conta a reprodução fotográfica da grande janela existente logo à entrada, réplica iconográfica colocada em frente ao seu modelo. A duplicação desta janela panorâmica salienta também a qualidade metafórica desse ícone como abertura para o exterior, para a paisagem natural e para o céu, compondo um contexto geográfico e cosmográfico para o devir do corpo e dos seus processos, e aludindo a esses planos de significado.

Correspondendo também a uma simetria óbvia, a réplica de outra abertura existente no espaço da exposição, uma janela de arco cujo rebatimento horizontal duplica esse formato para servir de moldura a uma imagem da boca da artista, aberta e com rosas cravadas em oferta para os visitantes (para serem retiradas por estes), pode ainda ser interpretada como o campo horizontal e liso onde se constrói a mandala [7], terreno nivelado onde é inevitável reconhecer a representação liturgicamente canónica do paraíso ou de um plano transcendente.

O alinhamento de três colunas, pré-existente no espaço, foi também duplicado por meio da colocação de três colunas falsas, compondo uma sequência reticular de três pares de colunas. Em cada coluna, situado a altura variável, existe um fragmento do corpo de Rute Rosas, em imagem ou como um pequeno objecto de prata (dedo, lábios e umbigo). Estes fragmentos opõem-se frontalmente, numa evidente conjunção de opostos: a boca contrapõe-se ao dedo, os olhos contrapõem-se ao umbigo, o umbigo contrapõe-se ao dedo. Incorporando-se aos elementos arquitectónicos do espaço (como também acontece com a imagem da sua boca na janela de arco rebatida), a artista torna explícito o contexto de conotações pelo qual um espaço arquitectónico se equipara a um cosmograma do corpo e dos seus processos, tornando-os homólogos. Visitando o espaço da exposição, o espectador visita também um corpo, e está não apenas perante representações dos processos deste, mas também das suas respectivas equivalências projectadas noutros planos de significado, à semelhança do que acontece nos ambulatórios de locais de culto.

Ao fundo da galeria, uma caixa de espelhos replica infinitamente a perfeição que serve de mote à exposição. Em oposição frontal, entre espelhos e à distância de um corpo, uma imagem com um pão saindo pela boca da artista, e a imagem homóloga com rosas saindo pela boca, são reflectidas miríades de vezes. Esta representação clássica do campo infinito, é também uma representação do plano transcendente, onde se projecta o poder de transubstanciação e, inerentemente, o poder da mente sobre a matéria, e expressa não apenas o processo divino que subjaz ao siddhi yôguico, mas também o processo criativo que subjaz à realização artística. Partilhando o mesmo princípio transcendente de homologação, ambos os processos comprovam um avanço sobre a condição humana, em direcção a uma vivência supra-humana, descondicionada e não-profana.

Na antecâmara verde e vermelha do espaço da exposição, recebendo o visitante, a artista apresenta uma árvore bonsaï com 32 maçãs/miniatura em crochet. Representando a idade da artista, as 32 maçãs indicam explicitamente o carácter auto-biográfico e auto-referencial do trabalho que ali começa a ser mostrado, a partir de um ícone genealógico, que pode interpretar-se como uma alusão à linhagem dos temas do seu trabalho artístico, à história da sua procedência e do seu desenvolvimento. Por outro lado, a árvore é um ícone arcaico que remonta ao estrato pré-agrícola, o mais antigo da cultura da vegetação, de divindade feminina, cujos locais de culto coincidiam com árvores de qualidade específica [8], ou ficavam na vizinhança de árvores. Traços destes cultos em culturas posteriores identificam iconograficamente a árvore com a mulher e com o altar [9].

1. ELIADE, Mircea, Yoga, Immortality and Freedom, Princeton Bollingen, New Jersey, 1990, (9ª edição, 1ª edição em 1958, edição original em 1954 Le Yoga Immortalité et liberté Librairie Payot, Paris), p.279-280. Este autor cita a passagem do Maháprajñápáramitáshástra, de Nágárjuna, (séc.III), referindo, na lista de ‘perfeições’ (siddhis), quatro tipos de metamorfoses, entre os quais se incluem as faculdades de “seres dotados de super-conhecimento (abhijña) conseguirem transformar substâncias por força do seu poder mágico (rhddhibala) ”, ou de “seres consagrados com uma vida no mundo material conseguirem transformar substâncias pela força da sua concentração (samádhi-bala)”.
2. Ibid., pp. 360-61.
3. Ibid., p. 280, em algumas regiões (Nepal e região Tamil), os alquimistas são chamados sittars – ou seja, siddhas, possuidores de siddhis.
4. Ibid., caps. VI. Yoga and Tantrism, VII. Yoga and Alchemy e VIII. Yoga and Aboriginal India.
5. Ibid., pp. 236-249. Pelo conhecimento do corpo como veículo energético, ou corpo subtil, e pelo domínio dos circuitos deste, a conjunção dos opostos energéticos dá-se pela união de prána e apána, fazendo confluir o sentido desses dois importantes movimentos energéticos, e pela harmonização de idá e pingalá, importantes condutos energéticos (nadís) de polaridades opostas, de modo a conseguir o despertamento da kundaliní, e a condução desta energia pela nadí sushumná (conduto energético situado no interior da coluna vertebral) desde o seu ponto de residência, no vórtice energético de raiz (muladhára chakra), até aos vórtices energéticos (chakras) superiores, cerebrais, passando pelos chakras intermédios situados ao longo da coluna vertebral, estações de poderes paranormais (siddhis) assim adquiridos pelo discípulo.
6. Ibid., pp. 249-254, “Intentional language”: «…no tantrismo, a “linguagem intencional” torna-se um exercício mental, é parte integrante do sádhana [prática]. O discípulo deve constantemente experimentar o misterioso processo de homologação e convergência que está na raiz da manifestação cósmica, já que ele próprio se tornou um microcosmos…»
7. Ibid., pp. 218-223. Elemento iconográfico da liturgia tantrica.
8. Por exemplo, a ficus religiosa, ibid. pp. 344-345.
9. Por exemplo, na árvore hierofanica do culto budista das caityas, divindades femininas, ou nos cultos da vegetação pré-arianos, ibid. pp. 345-346.