ENRIC TORMO. MONTESA. ESPANHA. AGOSTO 2008
Com a entrada do terceiro trimestre de 2008 é possível começar a fazer um balanço do que aconteceu e caracterizou estes últimos 12 meses. De tudo o sucedido e para nossa argumentação, interessa-nos destacar dois factos: as Olimpíadas celebradas na exótica China e a crise económica em que estamos imersos.
Segundo parece, ambos os factos estão unidos. Os chineses decidiram unilateral e definitivamente abandonar a dieta do arroz e comer no mínimo duas vezes por dia. Assim, o melhor sistema para o conseguir foi entrar directamente neste mundo global. Aquele que é único, uniforme, ordenado, tecnicamente desenvolvido e sobretudo seguro. Porém com toda a segurança, também aborrecido, anódino, uniforme, asfixiante e evidente. Para alcançar este fim recorreram a uma fórmula que já conheciam, por tê-la utilizado anteriormente; recorreram ao desporto. A única actividade humana que teoricamente é apolítica, não lucrativa, igualitária…democrática, basicamente porque não há vencedores nem vencidos, apenas participantes.
Há anos, nos tempos da guerra fria, para romper um pouco o gelo existente nas relações entre os Estado Unidos capitalistas e a China comunista, organizou-se uma espécie de encontros de “ping-pong” aquilo a que os puristas chamam de “ténis de mesa”. A alegoria e/ou metáfora não tem deixado de me surpreender desde então. Uma pequena bola que vai e vem sobre uma mesa verde de pequenas dimensões. Naquela época era só uma questão de limar asperezas, mas na actualidade a operação foi em grande escala e portanto o evento também tinha que ser bastante mais sofisticado. Levaram Pekin a Zeus Tonante e a todos os seus companheiros do Olimpo. Seguramente, tentando emular Esiodo, pretenderam criar um panteão com novos deuses.
A essa realidade queremos contrapor um terceiro facto, muito menos comentado e anunciado, porém não menos transcendente. A nossa Rute Rosas expõe numa pequena povoação do norte de Portugal, mais concretamente em Vila Nova de Cerveira. É uma povoação antiga, de tradição celta, situada sobre o rio Minho. A sua situação converte-a num enclave de ligação entre um norte e um sul separados pela política mas unidos pela consciência, onde se estabelece um constante fluir de água, gentes, ideias, desejos e ilusões. Definitivamente é uma porta que se abre para insuflar novos ares. É como um núcleo de resistência, alternativo a essas últimas correntes que postulam o pensamento único.
Isso faz-nos recordar aquela outra pequena povoação do norte da Gália que, graças a uma poção mágica resistiu e resistirá para sempre a … Cabe recordar que, segundo rezam as crónicas, também ganharam as Olimpíadas em que participaram.
Pois bem, Rute está ali. Porém… não é o Asterix; tampouco Obelix. Quiçá tenha algo de Panoramix, o druida? Não, não é nenhum deles, mas em seu afazer diário tem algo, o melhor, de cada um. De Asterix podemos encontrar a agilidade e a inteligência, a estratégia e a sagacidade. De Obelix, a sua simplicidade baseada no óbvio e o seu carinho por Idefix, neste caso por Fuji. De Panoramix, tem essa sintonia com o envolvimento, essa referência ao natural, à capacidade de criação, melhor, de geração mediante uma constante transformação. Quiçá a condição feminina ajude nesta realidade. A capacidade e a serenidade da gestação oferecem a Rute uma misteriosa possibilidade de introspecção plena. Diríamos que Eleusis continua existindo.
Isso é o que podemos ver, melhor, sentir, nesta mostra. Nela se apresenta o longo percurso da obra que, em etapas distintas, tem sido o motivo vital da nossa autora. Perante tal situação e á força de sermos ortodoxos deveríamos encontrar algum objectivo que definisse e demarcasse a qualidade da proposta exibida. Como se compõe de uma série que se refere a etapas criativas anteriores, estaríamos, pois, frente àquilo que conhecemos como “uma antologia, uma retrospectiva, uma biografia”, … mas não.
Não podemos concebe-la como uma antologia, pois nela não encontramos os trechos nem as notas anteriores, nem sequer se mostra uma linha evolutiva; tampouco é um compêndio inerte, inanimado de referência. Menos ainda é uma exposição retrospectiva, não estamos em cima de um outeiro, necessário e privilegiado, de onde possamos vislumbrar um trajecto com as suas sinuosidades e seus desníveis. Em caso algum é uma mostra biográfica, faltam muitos elementos, referências e nuances para sintetizar uma vida. Então, estamos frente a quê?
Estamos frente a uma essência, a um fluxo, à sua “posição mágica”. Uma receita de onde vão aparecendo os diferentes componentes da mistura.
Uma poção mágica, que toma como referência central e nuclear o próprio corpo. A referência constante ao próprio existir e sentir. Digamos, uma somatização do viver. Esse corpo é também a referência dos recursos, dos desejos, das ilusões, daquilo que poderia ter sido e que nunca será. Porque, definitivamente, são os sentidos que ainda estabelecem a relação com o exterior. É interactivo, é o meio a partir do qual se estabelece a expansão, tomando como centro um simples umbigo. Um umbigo que foi materializado, como outras partes anatómicas. Um corpo que foi abraçado, cosido, mutilado, exposto, lavado …
Estamos perante uma mostra selectiva dos seus trabalhos, das suas técnicas, mas singularmente do seu sentir. Há um conceito de transformação, de uma evolução, de uma superação de sentidos e estados, não na sua extensão mas sim na sua essência. Claramente quer ser uma síntese; isto é, uma selecção e ordenação de conteúdos que, sem dúvida, manifesta o encerrar de uma etapa, quiçá de juventude, para poder enfrentar um novo processo de expansão.
Até agora Rute tinha estabelecido uma relação estreita entre vivência, acção, reacção e obra, o nosso Obelix em pleno desenvolvimento. Porém, desde há pouco, produziu-se uma alteração. Houve uma tomada de consciência da existência de algo que está acima da própria obra. Daquilo que nos induz e nos leva até um lugar, uma meta.
Um destino? No sentido clássico (olímpico) da palavra. O nosso existir e o da própria autora transcende mais além, desenhando-se um futuro cheio de plenitude que se deve prever, Asterix, mas sempre ajudado e complementado pela “natura naturans”, Panomarix.
Manifesta-nos a consolidação de determinados parâmetros pessoais e emocionais. Já que, definitivamente, qualquer processo de selecção de vivências está condicionado a uma complexa rede de princípios éticos e morais. À criação de um contexto avaliador e controlador de tudo aquilo que lhe foi e é próprio. Estabelece-se assim um ponto de referência que impõe um processo de autocensura, de limitação expressiva. Isso, por paradoxo que pareça, é um claro sintoma de liberdade e de capacidade criativa. O autocontrolo significa o uso de uma depurada ferramenta cirúrgica que permite a melhoria de conteúdos, de formas e de modos.
Que estamos frente a esse rompimento, evidencia-se com a mudança de categoria do tema. Agora estamos frente à respiração, o contrário da asfixia. Creio que a evidência é tal que não é necessário ponderar as implicações. Não podemos esquecer que a respiração é o primeiro acto de vida autónoma de todo aquele que nasce. É um acto doloroso que inicia a penitência da vida, desse longo percurso que terminará quando se expira, se exala o ultimo sopro de ar. A vida, em definitivo, reduz-se somente a inalar e exalar ar.
Porém, também o ritmo da vida se conjuga com a cadência da respiração, com esse intercâmbio entre o interior e o exterior. Há um tempo para o sossego, palavra que só pode pronunciar-se pausadamente e medindo perfeitamente a expulsão do ar, mas há também momentos para o frenesi, onde a violência de expulsão do ar marca por si só a tensão. Isto implica um dinamismo e um movimento de vaivém e, logicamente, um aquecimento e arrefecimento constante das vias por onde passa.
É, decididamente, o aspecto que faltava na trajectória de Rute. Até agora as suas propostas só tinham sido exposições estáveis e estáticas, dentro de um espaço que se deveria percorrer. Todas as suas formulações eram materiais, tangíveis, objectivas, reais, … agora é só movimento e como tal, só sugerido, só indicado e assinalado. Eolo é o único Deus que se manifesta pelo seu movimento. Eolo não se vê, não se toca, sente-se. É inapreensível e é o único que, com o seu sopro divino, pode levar o homem desde o máximo do bem-estar até à loucura ou suicídio.
Perante isto, dir-se-ia que a autora quer tomar ar, alento, buscar esse instante de repouso. Encher de novo os pulmões e reiniciar a carreira que a conduza a esse destino que ela mesma se prometeu e, como Filipides, possa chegar aos pés de Atenea, deusa da sabedoria, de estratégia e da guerra, para proclamar aos quatro ventos “Nike” (vitória). Lutámos e vencemos as tropas gregárias dos grandes impérios.