SUSANA VAZ, SETEMBRO, 2002
Tendo por impulso motivador o aliciamento físico e emocional do outro, Rute Rosas faz o seu trabalho artístico evoluir em torno da possibilidade de participação do espectador na fruição activa, prática e presente, da obra (a artista designa o espectador como fruidor participante).
No seu trabalho artístico é possível encontrar uma linha cronológica que organiza modos de encenar - modos de conjugar plasticamente presenças e sugestões sensoriais – pelos quais os temas e formas das sucessivas obras serão mais intensamente vividos pelo espectador. Nesta linha evolutiva, as apresentações sofisticam-se. Comportam um número cada vez maior de elementos de composição: cores, odores, sons, formas, texturas. Tornam-se o ensaio de soluções pensadas para o envolvimento do espectador numa solicitação deliberada dos sentidos, preenchidos pela diferenciação de ambientes do espaço, ou pela realização ou visionamento de acções: tocar, cheirar, saborear, mastigar, comer.
Num primeiro momento de realizações e experiências, parece notória a importância atribuída ao detalhe no tratamento plástico de objectos escultóricos, em escala antropométrica e para uso do espectador, que pode deitar-se, sentar-se, mexer-lhes, e de que são exemplo obras como Deita-te (1998), Lugar (1999), Estar (1999), Interior (1999) ou Engano (1999). Estas peças estabelecem critérios reveladores das preferências plásticas da artista, e definidores de algumas das suas opções estéticas. Constatamos o evidente cuidado posto na escolha dos revestimentos que cobrem as formas, decididos pelo impacto cromático e pela qualidade táctil dos tecidos aplicados. Por outro lado, encontramos a ideia de acolhimento e de conforto, que se tornará recorrente: fica presente no desenho de formas redondas, pregnantes, e no uso de cores quentes, nestes casos o vermelho, e encontra-se acentuada na saturação cromática, densa e mate, e no apelo acariciador de tecidos como o veludo ou o feltro. Outro aspecto característico é o facto destas peças funcionarem como interfaces, pequenos locais de permanência breve, para o visionamento e realização de acções. (…)
Num núcleo posterior de realizações, Rute Rosas distribui e articula os elementos de composição - objectos, imagens, sons, odores - preenchendo o espaço, com a intenção de produzir ambientes sensorialmente carregados. As instalações Na Minha Boca (1999) e Confessa (2000) são exemplos de experiências de simultaneidade sensorial, de globalidade e de ambivalência perceptivas. Nestas obras fica reconhecida a importância plástica da projecção de imagens de grande escala, determinante, por exemplo, na luminosidade ambiente. São também ponderados nexos directos e explícitos entre, por um lado, a iconografia das imagens projectadas e, por outro lado, os materiais, formas e funcionalidade dos objectos, sons e odores apresentados.
Mais recentemente, Rute Rosas realiza trabalhos de produção mais complexa, que consistem na montagem de uma diversidade de elementos - ambientes, objectos, eventos – nos quais o visitante pode assistir e participar numa sequência de momentos e de experiências diferenciados. Neste ciclo de trabalhos, inaugurado com a exposição Mamã, deixa-me andar de escultura?! (2000), parece evidente e assumido o desejo de marcar o espectador, de deixar-lhe recordações, preferencialmente amáveis, não sendo por acaso que uma das mais recentes produções deste núcleo de experiências tem como título Marco-te com a tua marca (2002). Os ambientes, objectos e eventos são organizados de modo a envolver e conduzir o visitante num espectáculo multissensorial que se desenrola em vários tempos e em vários domicílios: a artista concretiza a deliberação consciente de que a via de acesso à memória é a emoção, e de que esta é atingida pela experiência sensorial, ou seja, necessariamente pela impressão física, que deverá ser tão preenchedora e completa quanto seja possível. (…)
Dentro de mim enquadra-se neste último modo de apresentação, insistindo em conteúdos exclusivamente autoreferenciais, num tom assumidamente confessional. Enquanto Mamã, deixa-me andar de escultura?! constituiu um painel de retorno à infância, de emoções resolvidas e ânsias respondidas, um tempo de recriação e aprendizagem entusiasmada, pacífica e confortável, Dentro de mim é o território simbólico de uma situação pessoal na actualidade, de autoanálise não discursiva, comportando os riscos de exposição de desconfortos, ansiedades, expectativas e interrogações, num registo estético que pretende conservar o carácter aliciador - acolhedor, agradável, convival. A exposição apresenta-se em 7 etapas e consiste numa combinação de ambientes, objectos escultóricos, projecções vídeo e audio e performance.
In catálogo Dentro de Mim, Galeria Canvas, Porto, Outubro, 2002