JACQUELINE BELOTTI. PROFESSORA – UFES
O termo unus mundus, mundo unido, mundo unitário, remete à alquimia medieval, tendo sido posteriormente resgatado pela psicologia de Carl Gustav Jung. O conceito implica na existência de uma unidade subjacente em toda a natureza material e imaterial. A experiência do unus mundus dá-se na sincronicidade dos acontecimentos, nos atos da criação artística e nas imagens espontâneas produzidas pelos sonhos. Segundo Jung, a idéia de unus mundus é ainda uma variação do nosso conceito do inconsciente coletivo.
Se trouxermos a idéia de unus mundus para uma perspectiva da arte produzida hoje, tomando como referência o tema escolhido pela curadora Lisete Lagnado para a 27º Bienal de São Paulo: COMO VIVER JUNTO1, notaremos que as inquietações sobre a possibilidade de vida coletiva na contemporaneidade, a tentativa de restauração do lugar da subjetividade, e a idéia de arte como ferramenta prática de mudança social, permeiam as reflexões intrínsecas à produção artística atual. Longe de qualquer afinidade com nacionalismos e regionalismos, as poéticas e práticas de artistas contemporâneos nômades, e suas experiências de deslocamentos em territórios híbridos sem fronteiras, trazem à tona e explicitam uma nova versão do que se poderia considerar como um novo unus mundus possível.
Se por um lado o nomadismo das HYPERLINK "http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.event_pres/simp_sem/semin-bienal/bienal-reconstr/reconstrucao-transm/" transmissões em tempo-real pela Internet promove a indistinção entre o que é relevante do que não é, por outro é na sincronicidade das experiências nômades seja de sons, traços, formas, movimento e dos afetos que se dá a criação artística, dizia Leonardo Da Vinci.
Para se pensar a criação no âmbito das culturas do Brasil, Itália e Portugal, no contexto atual das artes visuais, não poderia haver momento mais representativo desta sincronicidade que torna possível a “união dos mundos”, do que as exposições internacionais simultâneas dos artistas Rute Rosas (Portugal) e Giancarlo Néri (Itália), realizadas em 2003, no Castelinho do Flamengo, centro expositivo de arte contemporânea do Rio de Janeiro (Brasil).
O entrelaçamento de coincidências pôde ser resgatado do passado. O prédio, projetado em 1916 pelo arquiteto italiano Gino Copede a pedido do então proprietário, um rico comerciante português residente na cidade do Rio de Janeiro, vinculou-se à retomada do ecletismo na virada do século XIX e XX, tendência internacional consagrada pela arquitetura de Gaudí, na Espanha. Até hoje, sua arquitetura provoca curiosidade em torno do seu estilo, alimentando o imaginário popular com lendas e histórias - um vasto campo para a proposição de novas articulações simbólicas pelos artistas.
Sua edificação eclética, de tendência italiana, mescla elementos de diversos estilos e épocas, tais como o renascentista, o barroco, o clássico e o neo-gótico, formando o hoje popular “estilo castelinho”. O contraste e a coexistência da tradição, presente no exotismo das instalações do Castelinho, aliados à sua localização privilegiada, frente a um dos mais belos pontos da cidade, permitiu o desdobramento da questão em ricas poéticas de ocupação do espaço, empreendidas por Rute e Giancarlo.
O artista italiano, Giancarlo Néri, um escultor nascido em Nápolis, trabalha com o que se convencionou chamar - arte pública.
Montou um palco redondo em frente ao Castelinho, colocando em seu centro uma cadeira em estilo barroco, pintada na mesma cor do prédio.
Na varanda redonda da fachada, Giancarlo pendurou um enorme candelabro, mantendo-o iluminado por todo o período da mostra. Em uma sala interna, contígua à varanda, colocou outra cadeira exatamente igual, de frente para uma portinhola, onde se via um pequeno homem entre duas colunas, e entre elas se podia avistar uma lua falsa.
Com sua obra nomeada “Cadeira Ilustre”, retomou o objeto cadeira – uma das marcas de seu trabalho, neste site specific. Em frente ao Castelinho, um púlpito e uma cadeira solitária dialogavam com os passantes. Do olhar nômade dos transeuntes apressados, Giancarlo solicitava uma parada, um silêncio contemplativo – buscava a individualização do espectador anônimo. Na mesma lógica, a obra exposta no espaço interno do prédio, só podia ser vista a partir de um pequeno orifício frontal. Pela estratégia proposta pelo artista, o espectador deveria estar só diante da obra. Metáfora contemporânea dos limites externos e internos que nos são impostos, e aos quais estamos submetidos diariamente.
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Posteriormente, na gigantesca instalação “Lo scrittore”, realizada em Monza, em 2005, Giancarlo Néri retoma o objeto cadeira, remetendo a obra ao significado profundo do papel do escritor, celebrando sua inerente solidão. Simboliza o processo criativo da escritura que “obriga” o escritor a um isolamento total do mundo externo: ele, o escritor, afasta-se da realidade que o circunda, e segue só, em sua mesa de trabalho.
O Castelinho possui uma localização privilegiada, situando-se num dos mais belos pontos da cidade, passagem para quem vem do centro da cidade e dos aeroportos. As pistas do aterro do Flamengo onde o prédio está localizado dão acesso à linha vermelha, linha amarela, Av. Brasil e Praça XV - saída das barcas para Niterói. As próprias características arquitetônicas do prédio e sua localização no bairro e na cidade, contribuíram para propiciar a emergência de um “nomadismo estético” na exploração pelos artistas de possibilidades de articulação.
Segundo relatos, o Castelinho foi palco de grandes festas, em seu período áureo. Foi esta a vertente da memória do espaço que a artista portuguesa Rute Rosas definiu como o campo poético do seu trabalho. Rute considera que a arte pode ser um veículo para a promoção de uma cultura da sensibilidade. Conforme diz, a relação intrínseca que a arte tem com a vida implica um conhecimento profundo de nós próprios e dos outros, impulsionando o artista à construção de obras de arte somatossensoriais2, estabelecendo relações de reciprocidade entre o autor, a obra e os fruidores-participantes, num processo comunicante ativo, de envolvimento total, motivando a presença da arte na vida e da vida na arte.
Rute Rosas ocupou duas salas do Castelinho, estando na sala maior a vídeo-instalação “Por Fim” composta de uma sala revestida de branco, com quatro almofadões em forma de nuvens, com o vídeo em exibição numa das paredes. Na outra sala, um móvel que tem o formato da Lagoa Rodrigo de Freitas traz impressa a imagem de Rute nua em posição quase fetal. Na mesma sala, uma corbelha de rosas vermelhas sobe pelas paredes e interfere nas inúmeras mulheres das paredes (as estátuas de estuque decoradas com rosas).
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Esta foi a primeira exposição individual da artista no Brasil. Seu interesse na arte brasileira vai ao encontro da obra de Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica, tendo como elo de articulação a abordagem da questão corporal na obra de arte.
A nossa cultura é “baseada no excesso, na superprodução: a consequência é uma perda constante da acuidade da nossa experiência sensorial. Todas as condições da vida moderna – na sua plenitude material, na sua simples aglomeração – combinam-se para embotar as nossas faculdades sensoriais. (...) O que importa agora é recuperarmos os nossos sentidos. Devemos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais” (SONTAG, 1987, p. 23, apud ROSAS, 2002, p. 2).Rute se apropria da afirmação acima, de Susan Sontag, ressaltando que embora se trate de um documento de 1964, pode-se considerar que, mesmo hoje, este pensamento não perdeu sentido. Destaca ainda que embora sofrendo profundas evoluções, a sociedade do início do século XXI continua, sob diversos pontos de vista, a reprimir e até, por vezes, a subjugar o uso e o aprofundamento do nosso potencial sensitivo.
Em seu trabalho, a radicalização da experiência do próprio corpo como experiência da arte, faz com que atravesse todos os domínios plásticos que podem representar um corpo. Não é pintora, não é fotógrafa, não é escultora, não é performer, não é videoasta. E no entanto é tudo isso, ora simultaneamente, ora alternadamente.
Tanto Giancarlo Néri quanto Rute Rosas, com suas poéticas, afirmam-se como partidários da idéia de internacionalizar, descentralizar e experimentar novos tempos e espaços, ou seja, abrir, procurar o outro. Esses procedimentos convergem, de certa forma, num ponto focal, o de que a arte é a mais global experiência do mundo. Porque ela é, simultaneamente, experiência de si e experiência do outro, o possível unus mundus.
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Referências Bibliográficas
ROSAS, R. R. A Percepção Somatossensorial da Obra de Arte Pressupostos de um Projecto Artístico. 2002. Dissertação (Mestrado em Arte Multimédia ) – Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto, Porto.
∗ Jacqueline Belotti era diretora do Castelinho do Flamengo na ocasião do evento em destaque.
1.Como Viver Junto é um título dos seminários realizados entre 1976 e 1977 por Roland Barthes, em que ele aborda a vida em comunidades, em que os membros vivem ao mesmo tempo em companhia e em liberdade, como os budistas do Tibete.
2.A palavra somatossensorial reúne, pelo menos, dois conceitos que serão uma constante no trabalho de Rute: cinestesia e sinestesia. Diz respeito «ao sentir do soma (que significa “corpo” em grego).... O sistema somatossensorial é, na verdade, mais do que um só sistema. É uma combinação de subsistemas, cada um dos quais transmite para o cérebro sinais acerca do estado de diversos aspectos do corpo», e os conceitos referidos implicam uma relação direta entre o corpo e a mente.