ÁGUA DE COLÓNIA
DENTRO DE MIM
 
"...POUCOS EXISTEM QUE AINDA SAIBAM..."
DOIS DEDOS DE CONVERSA...
DA AFECTIVIDADE ENQUANTO PROCESSO
"EM CONVERSA"
RESPIRA
ÁGUA DE COLÓNIA
 
 
ENTRE O CORPO E A PAISAGEM
"NÃO HÁ PRÍNCIPE AZUL NO ELEFANTE COR-DE-ROSA"
 
 
 
 
“UNUS MUNDUS”: SOBRE COMO VIVER JUNTO
MAMÃ, DEIXA-ME ANDAR DE ESCULTURA?!
 
 
 
 
ALGUMAS QUESTÕES EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO SENSORIAL
RESPIRA

RESPIRA


SUZANA VAZ, TOKYO, AGOSTO 2008

Por um momento, em todo o espaço de exposição, revelada quando as cortinas caem, uma única palavra: respira.  
A apresentação Respira tem a força vital preponderante e invisível de um fôlego profundo. Rute Rosas realinha a sua respiração, observa-se, e convida o visitante a fazer isso mesmo, a juntar-se à sua reflexão.
Daquilo que poderia ser uma exposição convencional resta o vídeo do dia da abertura, que mostra o registo desse evento minimal, e a distribuição de um objecto, o catálogo, assinado e numerado. Este reúne o essencial da obra de Rute Rosas e materializa o movimento retrospectivo presente, incluindo também obras recentes individuais, co-autorias e parcerias, realizadas maioritariamente com jovens artistas.
O cancelamento iconográfico de Respira compreende-se no seguimento da instalação Não Há Príncipe Azul no Elefante Cor-de-Rosa (Abril 2008, Espaço Ilimitado, Porto), da qual a artista excluiu alguns dos elementos característicos do seu discurso artístico: representações do seu corpo, a proposta de vivências sensoriais directas ou de uma predisposição convivial (expressa, por exemplo, na oferta de artigos comestíveis). Estes elementos facilitam a experiência vivencial directa, a emergência do inconsciente incorporado e da volição criativa, reduzindo assim a importância de uma leitura de significados; por outro lado, manifestam o impulso egóico numa essencialidade física, prefigurado na objectividade do comportamento pelo protocolo de fruição.   
Em Não Há Príncipe Azul…, o espaço da casa - repleto de artigos do quotidiano e evocativos de memórias da existência, exibidos quase museograficamente - não contém nenhum dispositivo que conduza ao comportamento de acesso à materialidade do corpo, nem nenhuma representação da vitalidade pura, experiencial, do corpo. A vida e a experiência estão esquematizadas na área delimitada e contingente do discurso codificado, aparecem mediadas pela linguagem, pela inerência do significado, seja no conteúdo verbal das mensagens bordadas, seja no conteúdo poético dos artigos emoldurados ou dos objectos, simbolicamente sobrecarregados. Embora imerso num ambiente preparado, o visitante apreende o sentido do trabalho pela elaboração de significados, por uma aproximação tendencialmente conceptual, discursiva ou mesmo literária.
Nesta progressão em que a afirmação do ego se desloca do dinamismo do inconsciente para a deliberação do consciente, Respira pode ser entendida como uma anuência sem reservas ao exercício de consciência, pelo qual se reconfigura o ego no seu papel de centro negociador do processo consciente, de agente mediador entre o inconsciente pessoal, a realidade, e a persona. A persona que emerge da apresentação Respira é introspectiva e discreta. Encontra-se envolta pelo código verbal, resguardada pela consciência linguística. É mediata, inclinada ao exame dos impulsos. Situa-se no silêncio reflexivo da leitura, onde sobra apenas o murmúrio da respiração, traço residual da fisiologia.

Em simultâneo com Respira, Rute Rosas revisita, em Cerveira, a residência Faço de conta que és tu (Berlim, 2004, Galerie 35) mantendo o seu ícone central, um objecto de madeira que estiliza, em escala natural, o vulto de um corpo com as pernas dobradas, para ficar deitado na posição de ‘cadeirinha’. A leitura comparativa dos dois projectos, dentro da ideia de transmutação simbólica que está no cerne do processo de individuação, reforça a interpretação de uma persona que opta por observar em vez de agir, dissociada do devaneio que o ícone outrora suscitou.
No projecto de residência original, a artista dormia ao lado do vulto, na mesma cama em que este repousava, usando-o quase como um objecto de substituição. O simulacro de interacção sublinhava uma expectativa não correspondida, um anseio, a atmosfera dramaticamente sobrecarregada do apego.
Em Cerveira, o vulto permaneceu duas noites numa carrinha, dentro de um saco preto, do qual foi tirado para ficar num beliche no albergue de artistas, no quarto em baixo daquele em que a artista dormia. À economia dos gestos que resulta da ausência de iniciativas de interacção corresponde um abrandamento da energia da psique nos seus planos mais densos, físico e emocional, e estes dois factores comprovam o apagamento do símbolo, que caducou como estrutura dinâmica no processo de individuação.
Entretanto, alguns procedimentos de finalização compõem uma nova imagem: o vulto ficará deitado num dos lados de uma cama cortada ao meio – literalmente, revelando todas as camadas de fibra, do colchão à coberta – objecto escultórico que transporta, em significados também directamente apreensíveis, o que resta do ciclo biográfico. Esta peça fará parte do espólio do Museu da Bienal de Cerveira, no qual a artista já está representada com o seu trabalho de instalação Da Terra ao Céu, que foi Prémio Bienal de Cerveira em 2005.