ÁGUA DE COLÓNIA
DENTRO DE MIM
 
"...POUCOS EXISTEM QUE AINDA SAIBAM..."
DOIS DEDOS DE CONVERSA...
DA AFECTIVIDADE ENQUANTO PROCESSO
"EM CONVERSA"
RESPIRA
ÁGUA DE COLÓNIA
 
 
ENTRE O CORPO E A PAISAGEM
"NÃO HÁ PRÍNCIPE AZUL NO ELEFANTE COR-DE-ROSA"
 
 
 
 
“UNUS MUNDUS”: SOBRE COMO VIVER JUNTO
MAMÃ, DEIXA-ME ANDAR DE ESCULTURA?!
 
 
 
 
ALGUMAS QUESTÕES EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO SENSORIAL
RESPIRA

MAMÃ, DEIXA-ME ANDAR DE ESCULTURA?!


RUTE ROSAS. PORTO, 2000

Era uma vez uma menina muito pequenina que brincava no barracão que a avó tinha atrás de sua casa. Passava grande parte do seu tempo, depois das aulas durante a manhã, a inventar histórias, personagens, ambientes, com a ajuda das bonecas e de outros brinquedos, bem como dos bichinhos que viviam entre os jarros, roseiras e brincos de princesa, no pequeno jardim que separava os dois espaços.

A avó Linda, como todos na família lhe chamavam, era uma mulher forte, resistente ao sofrimento e dedicada à sua primeira neta. Uma dona-de-casa perfeita. Lembro-me que à 2a e 6a feiras de todas as semanas se passava o dia na limpeza, depois do esquema ser meticulosamente definido. Quando eu chegava da escola, que era mesmo ali ao lado, a Tucha esperava-me à porta que já estava aberta, pois pelo seu miar a avó Linda sabia que eu estava muito perto. O almoço sempre pronto e o lugar na mesa da cozinha aguardavam a minha chegada, assim como aquele beijo. Durante a refeição o meu avô lamentava-se dos negócios aos ouvidos atentos da avó Linda, sempre dedicada e interveniente procurando amenizar a situação. Depois ele saía apressado, enquanto a avó lhe escovava o casaco no percurso até à porta. E ficávamos nós as duas com a Tucha. Era a minha vez de contar o que se tinha passado na escola, da avó relatar a sua manhã, com o fundo sonoro dos Parodiantes de Lisboa, que, por vezes, nos faziam soltar gargalhadas. Então eu fazia, rapidamente, os trabalhos de casa para poder brincar até à hora do lanche.
Hum! Os sabores das melhores guloseimas eram preparados dependendo da época do ano e do meu pedido. O leite-creme, a aletria, a torta de laranja com geleia, o doce de abóbora, que comíamos com bolachinhas, a manteiga que fazíamos com a nata do leite e saboreávamos com pão torrado...

As roupinhas das bonecas também eram, inicialmente, feitas por ti, com o tecido que sobrava dos meus vestidos. Na velhinha máquina de costura preta e dourada, sentada ao teu colo, ajudavas-me naquele ritmo de vaivém da pedaleira, que me parecia na época inatingível. Quando a noite se aproximava e chegava a hora de voltar para casa, era um drama. Queria ficar contigo, mas também queria os meus pais, que muitas vezes acabavam por me deixar ficar, particularmente à 6a feira, pois o avô chegava sempre muito tarde, e não havia escola no dia seguinte.
Nas noites de Inverno, davas-me banho e perguntavas-me se no dia em que eu fosse grande e tu pequenina eu te daria banho e trataria de ti. Eu respondia que sim, mas confesso que a ideia me fazia bastante confusão.
Meu Deus, nunca pensei que algum dia isso viesse a acontecer.
Fazíamos tricote e víamos televisão, depois íamos para a minha cama onde partilhávamos a botija eléctrica, coberta com um número infinito de tubos de lã para não queimarem os lençóis nem a nossa pele. Fazíamos cadeirinha e eu adormecia dentro de ti enquanto contavas histórias do tempo em que as plantas e os animais falavam. Foi uma vida dura mas tu tinhas o cuidado de a adoçar com o tom de voz que utilizavas.
Todos os meses, mais ou menos na mesma altura, íamos à Praça da Liberdade pagar o aluguer da tua casa e passávamos por aquela escola e eu dizia que quando fosse grande queria ir para lá. Eu sei que a ideia não te agradava muito, mas mais tarde entendeste que era aquilo mesmo que eu queria.
Sempre que saíamos seguravas-me a mão com tanta força, que se fechar os olhos ainda consigo sentir a pressão e o calor. Não era por medo de uma fuga, o que não deixava de ser uma possibilidade («leva-me, que eu quero ser livre!» era a expressão que eu usava sempre que ao ver o cão na rua, saltava para o seu lombo), mas porque te sentias responsável pelo teu tesouro e tinhas medo de o perder. Foi muito difícil quando eu fui para o jardim--escola, ficamos doentes, embora fosse importante para mim estar com outros meninos.


Passámos muitas férias juntas. Gostava de estar contigo. Eras a avó mais linda, que me ouvia e ajudava nos trabalhos de casa, nas brincadeiras, que me dava beijinhos doces e palmadinhas quando eu me portava mal. Que me ajudava a preparar os “espectáculos” que eu fazia para os meus pais quando chegavam de trabalhar, e nos quais eu cantava, dançava e contava histórias, até ficar com sono. Davam imenso trabalho. Desde as constantes mudanças de cenários, figurinos e maquilhagem, até à sincronização musical.
Durante longos anos, levavas-me ao ballet, no 6, e esperavas por mim sentada na sala invadida de um aroma a resina de pinheiro. No fim da aula vestias-me e voltávamos para casa, no 6, com os cheiros nauseabundos, os apertos e encontrões, e, na melhor das hipóteses quando havia um lugar livre eu sentava-me no teu colo e seguíamos viagem de mão dada.
Tenho orgulho de te ter tido como avó, até porque foste mais do que isso sem nunca teres substituído ninguém, tinhas e tens, no meu coração, o teu espaço.
As histórias têm sempre um fim, mesmo aquelas que pensamos que nunca vão acabar.
Tenho saudades tuas!


Texto publicado no catálogo da exposição Mamã, deixa-me andar de escultura?! Galeria Serpente. Porto. Setembro/Outubro. 2000.